A bisavó
Rubem Alves
Minhas netas: hoje é o dia das mães. Vou falar sobre a minha mãe, sua bisavó, que vocês não chegaram a conhecer. Ela morreu antes de vocês nascerem.
Para falar sobre a minha mãe eu vou dar uma explicação inicial. Gosto de escrever. Especialmente para crianças. Tanto para crianças como vocês quanto para as crianças que moram, escondidas, dentro dos adultos. Se eles deixassem as crianças que moram neles sair do lugar onde estão presas, eles poderiam brincar e ficar mais bonitos.
Escrevendo, eu uso sempre “metáforas“. O nome é difícil mas é fácil explicar. Metáfora é quando, olhando para uma coisa, a gente vê outra. Neruda, poeta, olhou para uma cebola e viu que ela se parecia com uma “rosa de água com escamas de cristal!“. Ora, cebola é cebola. Não é rosa. Mas o poeta viu, na cebola, uma rosa. Cecília Meireles pensou sobre a vida dela e viu um barco navegando por um mar sem fim. Ora, a vida não é um barco navegando. Mas a poeta viu, na própria vida, um barco a navegar no mar azul...
Pois eu vou usar uma metáfora que vocês, a princípio, não entenderão – mas entenderão, porque toda criança tem olhos e imaginação de poeta: no tempo da minha mãe, sua bisavó, as mulheres eram como árvores. Agora, elas se parecem com pássaros...
Vocês se lembram da estória da Cinderela. O nome antigo era Gata Borralheira. Vejam: dizer que uma menina é “gata borralheira“ é uma metáfora. Ela era uma menina; não era uma gata. Peçam ao seu pai ou sua mãe que explique para vocês a razão dessa metáfora. Borralheira é que gosta de borralho. Sabem o que é borralho? Borralho são as cinzas quentes que ficam no fogão de lenha, depois de apagado o fogo... Pois a estória moderna daquela menina triste, do Walt Disney, conta que ela tinha uma “Fada Madrinha“... Na estória original - muito antiga - não havia nenhuma “Fada Madrinha“. Era diferente. A mãe da menina havia morrido. E agora ela estava nas garras de uma madrasta malvada e duas filhas invejosas que a mantinham presa na cozinha – perto do borralho. Abandonada... Não, não, não! Não estava abandonada. Mesmo morta, a sua mãe continuava a protegê-la. Quem a protegia não era uma Fada Madrinha; era a sua mãe! E sabem como ela a ajudava? Ela, mãe, morava numa árvore que a menina plantara no quintal da casa. A árvore estava sempre cheia de pássaros. Os pássaros eram os anjos da mãe. Eram os pássaros que ajudavam a Gata Borralheira...
As mulheres, nos tempos antigos, nos tempos da minha infância, eram árvores.
No meu sítio, lá em Pocinhos do Rio Verde, tenho árvores plantadas para todos os meus amigos que morreram. Plantei também uma árvore para a minha mãe. Ainda não plantei uma árvore para o meu pai porque ainda não encontrei a árvore-metáfora que se parece com ele. Como pode uma árvore se parecer com uma pessoa? Pode. Para o meu pai, escolhi uma laranjeira. Meu pai adorava chupar laranjas. Ele ia descascando as laranjas com incrível técnica, sem jamais ferir a laranja. Laranja com casca ferida é ruim de chupar. As cascas inteiras, ele ia pendurando no braço esquerdo. Cascas de laranja, secas, são um combustível maravilhoso. Eram usadas, de manhã, na feitiçaria de acordar as brasas para acender o fogo, como já expliquei. Essas laranjeiras modernas, enxertos, não são laranjeiras de verdade. Árvores anãs, mirradas – as laranjas ao alcance da mão. Para ser metáfora do meu pai a laranjeira tem de ser das antigas, que demoravam para crescer e ficavam altas, as laranjas amarelas lá no alto! Era preciso subir na laranjeira para apanhar as laranjas. Era o que eu fazia com meus amigos. Subíamos na laranjeira e chupávamos sem parar. Cada um com seu canivetinho. Já havíamos aprendido a arte de descascar laranjas como o meu pai. Eram tantas as laranjas que chupávamos, que ficávamos com vontade de fazer xixi. Pois não havia problema: fazíamos xixi do alto das laranjeiras e morríamos de dar risada, vendo o xixi cair e se empoçar na terra. Essa é uma das vantagens de ser homem: fazer xixi do alto de uma laranjeira... Quando eu encontrar uma muda das laranjeiras antigas plantarei como metáfora do meu pai. E então, os passarinhos, especialmente os sanhaços azuis, anjos dele, virão chupar as laranjas.
Para minha mãe plantei um pé de camélia. Camélias são flores lindas – tão perfeitas, algumas brancas, outras vermelhas. Fui a Santiago de Compostela, no norte da Espanha. Dizem que Deus, em Santiago, é mais forte que em outros lugares. Por essa razão, os que acreditam fazem longas peregrinações a pé para chegar até lá, onde se encontra uma gigantesca catedral. Não fui a pé. Fui de carro. Visitei a catedral. Não me senti mais perto de Deus. Me senti mais longe. Uma construção feia, pesada, escura. Me deu tristeza. Mas, saindo triste da catedral, entrei nos imensos parques que há por lá. Tudo era luz, cor, leveza, pássaros voando e cantando, a vida explodindo em todos os lugares. Fiquei inundado de alegria. O Criador, no Paraíso, não fez nenhuma catedral. Se gostasse teria feito. Plantou árvores. Camélias... Nos parques fora da catedral havia camélias por todos os lados – árvores enormes, cobertas de flores. Sempre que vejo a beleza surgindo me sinto próximo de Deus. Deus é beleza mansa. Sugiro que, no futuro, se façam peregrinações a Santiago de Compostela para se ver as camélias. Porque se São Tiago foi enterrado por lá, como se diz, garanto que ele não está dentro daquela igreja escura. Está é passeando pelos parques. Os passarinhos e as flores são os Anjos de São Tiago!
Eu olhava para as camélias e me lembrava da camélia que plantei para a minha mãe...
Disse que antigamente as mulheres se pareciam com árvores. As árvores não saem do lugar. Crescem onde plantamos. Indefesas. Não reagem, não fogem, não gemem – nem mesmo quando são cortadas a machado. Pois assim eram as mulheres: nasciam e pelo resto de suas vidas teriam de obedecer aos homens. Primeiro, tinham de obedecer as ordens do pai. Depois, tinham de obedecer as ordens do marido. Carlos Gomes fez até uma cantiga de conselhos para uma jovem que queria se casar e ele a advertia de que, com isso, ela iria perder a liberdade: “a vontade ao marido há de fazer, que esse dever o casamento traz..“. Na verdade, nem antes de casar elas estavam livres. Estavam à mercê da vontade dos pais. Era o pai que decidia se ela devia se casar, quando e com quem. E nem tinham a liberdade de se decidir por uma profissão. Lugar de mulher era na casa, no fogão, na máquina de costura. As mulheres não eram donas do seu corpo, não mandavam no seu destino. Árvores à mercê da vontade do jardineiro, sem poder fugir... Como gostariam de ser pássaros, e voar para longe, longe...
Não podendo ser pássaros, as árvores dão flores. Flores são os pássaros das árvores. Flores são vôos que não conseguiram voar e se cristalizaram em beleza e perfume. Quem dá uma flor a alguém está lhe dando um desejo de voar.
Minha mãe era uma árvore que queria voar e não podia. Aí, como a camélia, ela começou a dar flores. As flores que minha mãe dava apareciam sob a forma de música. Menino, eu a ouvia estudando piano horas seguidas. Enquanto tocava piano ela voava pelo mundo da beleza que nem pai e nem marido podiam impedir: a alma é livre.
Por que uma pessoa gosta de música? Eu acho que uma pessoa gosta de música, primeiro, porque a música já nasce com a gente. Ela está lá, no fundo da alma, dormindo. Mas é necessário que haja alguém que desperte essa “Bela Adormecida“. No caso de minha mãe, eu suspeito que tenha sido um professor de piano... Ah! os professores de piano, seres perigosos, sedutores... O Vinícius de Moraes compôs uma música malandra chamada Aula de Piano que colocaram, indevidamente, junto com as canções infantis da Arca de Noé. Minha mãe, vez por outra, se referia ao seu professor de piano. O nome dele era Riciotti – nem sei se é assim que se escreve. Vi uma foto dele. Másculo. Tinha bigodes torcidos, voltados para cima. Fantasiar não faz mal... Fantasio que minha mãe, adolescente, ficou apaixonada por ele. Tenho mesmo a suspeita de que ele a amou e chegou mesmo a compor uma valsa para ela: Ela aos quinze anos. Se estou errado, meus irmãos que me corrijam. Mas, como diz o ditado italiano, “se não é verdadeiro, foi bem imaginado“. Como no filme Festa de Babette – a jovem ficou apaixonada pelo professor de canto. Proibidos de se amar pelo pai e dono dela, eles faziam declarações de amor cantando duetos apaixonados de ópera! Gosto de imaginar que tenha sido assim.
Professor de música! Pobretão. Meu avô, trisavô de vocês, Capitão Evaristo, rico comerciante dono de sobrado colonial e carro importado, jamais iria permitir que filha sua se casasse com um pobretão. Minha mãe se casou com meu pai, seu bisavô, um homem muito bom, divertido, manso, que não tinha cultura musical mas era rico. Depois, como eu já contei, ele ficou pobre... “Carminha“ - ele dizia com carinho – “toque uma daquelas valsinhas boas prá dormir.“ Minha mãe atendia o seu pedido inocente, interrompia a balada em sol de Chopin e tocava a valsinha. Logo ele dormia como uma criança...
Minha mãe era uma camélia mansa cujas flores eram a música. Há determinadas peças que, ao ouvir, sempre me lembro dela. Se vocês quiserem conhecer um pouco a alma da sua bisavó, é só pedir, e eu colocarei para tocar os CDs com as músicas que ela amava.
Outro jeito que as mulheres-árvores tinham de florir eram os filhos. Se elas não podiam voar de verdade, voavam imaginando os filhos voando. Viviam uma vida simples, modesta, sempre plantadas no chão – e eram sempre uma sombra e um colo onde os filhos tristes encontravam conforto. Especialmente nas coisas gostosas que só as mães sabiam fazer na cozinha. Fazer o prato predileto do filho: era o jeito que elas tinham de dizer às noras: “Você nunca tomará o meu lugar!“.
Claro, havia umas mulheres revoltadas por não poder voar. Viravam cactus, só espinho. E os filhos sofriam. Minha avó era assim – que Deus a tenha. Mas não minha mãe, que aprendeu ternura com uma velha escrava chamada Iáiá. Por vezes as mães verdadeiras não são as mães de barriga – são as mães de coração.
As mulheres, hoje, se cansaram de viver para fazer vontade de pai e de marido. Estão se transformando em pássaros: querem voar – determinar o seu destino, ser donas de suas vidas. Liberdade: esse é um direito de todo ser humano.
Para falar sobre a minha mãe eu vou dar uma explicação inicial. Gosto de escrever. Especialmente para crianças. Tanto para crianças como vocês quanto para as crianças que moram, escondidas, dentro dos adultos. Se eles deixassem as crianças que moram neles sair do lugar onde estão presas, eles poderiam brincar e ficar mais bonitos.
Escrevendo, eu uso sempre “metáforas“. O nome é difícil mas é fácil explicar. Metáfora é quando, olhando para uma coisa, a gente vê outra. Neruda, poeta, olhou para uma cebola e viu que ela se parecia com uma “rosa de água com escamas de cristal!“. Ora, cebola é cebola. Não é rosa. Mas o poeta viu, na cebola, uma rosa. Cecília Meireles pensou sobre a vida dela e viu um barco navegando por um mar sem fim. Ora, a vida não é um barco navegando. Mas a poeta viu, na própria vida, um barco a navegar no mar azul...
Pois eu vou usar uma metáfora que vocês, a princípio, não entenderão – mas entenderão, porque toda criança tem olhos e imaginação de poeta: no tempo da minha mãe, sua bisavó, as mulheres eram como árvores. Agora, elas se parecem com pássaros...
Vocês se lembram da estória da Cinderela. O nome antigo era Gata Borralheira. Vejam: dizer que uma menina é “gata borralheira“ é uma metáfora. Ela era uma menina; não era uma gata. Peçam ao seu pai ou sua mãe que explique para vocês a razão dessa metáfora. Borralheira é que gosta de borralho. Sabem o que é borralho? Borralho são as cinzas quentes que ficam no fogão de lenha, depois de apagado o fogo... Pois a estória moderna daquela menina triste, do Walt Disney, conta que ela tinha uma “Fada Madrinha“... Na estória original - muito antiga - não havia nenhuma “Fada Madrinha“. Era diferente. A mãe da menina havia morrido. E agora ela estava nas garras de uma madrasta malvada e duas filhas invejosas que a mantinham presa na cozinha – perto do borralho. Abandonada... Não, não, não! Não estava abandonada. Mesmo morta, a sua mãe continuava a protegê-la. Quem a protegia não era uma Fada Madrinha; era a sua mãe! E sabem como ela a ajudava? Ela, mãe, morava numa árvore que a menina plantara no quintal da casa. A árvore estava sempre cheia de pássaros. Os pássaros eram os anjos da mãe. Eram os pássaros que ajudavam a Gata Borralheira...
As mulheres, nos tempos antigos, nos tempos da minha infância, eram árvores.
No meu sítio, lá em Pocinhos do Rio Verde, tenho árvores plantadas para todos os meus amigos que morreram. Plantei também uma árvore para a minha mãe. Ainda não plantei uma árvore para o meu pai porque ainda não encontrei a árvore-metáfora que se parece com ele. Como pode uma árvore se parecer com uma pessoa? Pode. Para o meu pai, escolhi uma laranjeira. Meu pai adorava chupar laranjas. Ele ia descascando as laranjas com incrível técnica, sem jamais ferir a laranja. Laranja com casca ferida é ruim de chupar. As cascas inteiras, ele ia pendurando no braço esquerdo. Cascas de laranja, secas, são um combustível maravilhoso. Eram usadas, de manhã, na feitiçaria de acordar as brasas para acender o fogo, como já expliquei. Essas laranjeiras modernas, enxertos, não são laranjeiras de verdade. Árvores anãs, mirradas – as laranjas ao alcance da mão. Para ser metáfora do meu pai a laranjeira tem de ser das antigas, que demoravam para crescer e ficavam altas, as laranjas amarelas lá no alto! Era preciso subir na laranjeira para apanhar as laranjas. Era o que eu fazia com meus amigos. Subíamos na laranjeira e chupávamos sem parar. Cada um com seu canivetinho. Já havíamos aprendido a arte de descascar laranjas como o meu pai. Eram tantas as laranjas que chupávamos, que ficávamos com vontade de fazer xixi. Pois não havia problema: fazíamos xixi do alto das laranjeiras e morríamos de dar risada, vendo o xixi cair e se empoçar na terra. Essa é uma das vantagens de ser homem: fazer xixi do alto de uma laranjeira... Quando eu encontrar uma muda das laranjeiras antigas plantarei como metáfora do meu pai. E então, os passarinhos, especialmente os sanhaços azuis, anjos dele, virão chupar as laranjas.
Para minha mãe plantei um pé de camélia. Camélias são flores lindas – tão perfeitas, algumas brancas, outras vermelhas. Fui a Santiago de Compostela, no norte da Espanha. Dizem que Deus, em Santiago, é mais forte que em outros lugares. Por essa razão, os que acreditam fazem longas peregrinações a pé para chegar até lá, onde se encontra uma gigantesca catedral. Não fui a pé. Fui de carro. Visitei a catedral. Não me senti mais perto de Deus. Me senti mais longe. Uma construção feia, pesada, escura. Me deu tristeza. Mas, saindo triste da catedral, entrei nos imensos parques que há por lá. Tudo era luz, cor, leveza, pássaros voando e cantando, a vida explodindo em todos os lugares. Fiquei inundado de alegria. O Criador, no Paraíso, não fez nenhuma catedral. Se gostasse teria feito. Plantou árvores. Camélias... Nos parques fora da catedral havia camélias por todos os lados – árvores enormes, cobertas de flores. Sempre que vejo a beleza surgindo me sinto próximo de Deus. Deus é beleza mansa. Sugiro que, no futuro, se façam peregrinações a Santiago de Compostela para se ver as camélias. Porque se São Tiago foi enterrado por lá, como se diz, garanto que ele não está dentro daquela igreja escura. Está é passeando pelos parques. Os passarinhos e as flores são os Anjos de São Tiago!
Eu olhava para as camélias e me lembrava da camélia que plantei para a minha mãe...
Disse que antigamente as mulheres se pareciam com árvores. As árvores não saem do lugar. Crescem onde plantamos. Indefesas. Não reagem, não fogem, não gemem – nem mesmo quando são cortadas a machado. Pois assim eram as mulheres: nasciam e pelo resto de suas vidas teriam de obedecer aos homens. Primeiro, tinham de obedecer as ordens do pai. Depois, tinham de obedecer as ordens do marido. Carlos Gomes fez até uma cantiga de conselhos para uma jovem que queria se casar e ele a advertia de que, com isso, ela iria perder a liberdade: “a vontade ao marido há de fazer, que esse dever o casamento traz..“. Na verdade, nem antes de casar elas estavam livres. Estavam à mercê da vontade dos pais. Era o pai que decidia se ela devia se casar, quando e com quem. E nem tinham a liberdade de se decidir por uma profissão. Lugar de mulher era na casa, no fogão, na máquina de costura. As mulheres não eram donas do seu corpo, não mandavam no seu destino. Árvores à mercê da vontade do jardineiro, sem poder fugir... Como gostariam de ser pássaros, e voar para longe, longe...
Não podendo ser pássaros, as árvores dão flores. Flores são os pássaros das árvores. Flores são vôos que não conseguiram voar e se cristalizaram em beleza e perfume. Quem dá uma flor a alguém está lhe dando um desejo de voar.
Minha mãe era uma árvore que queria voar e não podia. Aí, como a camélia, ela começou a dar flores. As flores que minha mãe dava apareciam sob a forma de música. Menino, eu a ouvia estudando piano horas seguidas. Enquanto tocava piano ela voava pelo mundo da beleza que nem pai e nem marido podiam impedir: a alma é livre.
Por que uma pessoa gosta de música? Eu acho que uma pessoa gosta de música, primeiro, porque a música já nasce com a gente. Ela está lá, no fundo da alma, dormindo. Mas é necessário que haja alguém que desperte essa “Bela Adormecida“. No caso de minha mãe, eu suspeito que tenha sido um professor de piano... Ah! os professores de piano, seres perigosos, sedutores... O Vinícius de Moraes compôs uma música malandra chamada Aula de Piano que colocaram, indevidamente, junto com as canções infantis da Arca de Noé. Minha mãe, vez por outra, se referia ao seu professor de piano. O nome dele era Riciotti – nem sei se é assim que se escreve. Vi uma foto dele. Másculo. Tinha bigodes torcidos, voltados para cima. Fantasiar não faz mal... Fantasio que minha mãe, adolescente, ficou apaixonada por ele. Tenho mesmo a suspeita de que ele a amou e chegou mesmo a compor uma valsa para ela: Ela aos quinze anos. Se estou errado, meus irmãos que me corrijam. Mas, como diz o ditado italiano, “se não é verdadeiro, foi bem imaginado“. Como no filme Festa de Babette – a jovem ficou apaixonada pelo professor de canto. Proibidos de se amar pelo pai e dono dela, eles faziam declarações de amor cantando duetos apaixonados de ópera! Gosto de imaginar que tenha sido assim.
Professor de música! Pobretão. Meu avô, trisavô de vocês, Capitão Evaristo, rico comerciante dono de sobrado colonial e carro importado, jamais iria permitir que filha sua se casasse com um pobretão. Minha mãe se casou com meu pai, seu bisavô, um homem muito bom, divertido, manso, que não tinha cultura musical mas era rico. Depois, como eu já contei, ele ficou pobre... “Carminha“ - ele dizia com carinho – “toque uma daquelas valsinhas boas prá dormir.“ Minha mãe atendia o seu pedido inocente, interrompia a balada em sol de Chopin e tocava a valsinha. Logo ele dormia como uma criança...
Minha mãe era uma camélia mansa cujas flores eram a música. Há determinadas peças que, ao ouvir, sempre me lembro dela. Se vocês quiserem conhecer um pouco a alma da sua bisavó, é só pedir, e eu colocarei para tocar os CDs com as músicas que ela amava.
Outro jeito que as mulheres-árvores tinham de florir eram os filhos. Se elas não podiam voar de verdade, voavam imaginando os filhos voando. Viviam uma vida simples, modesta, sempre plantadas no chão – e eram sempre uma sombra e um colo onde os filhos tristes encontravam conforto. Especialmente nas coisas gostosas que só as mães sabiam fazer na cozinha. Fazer o prato predileto do filho: era o jeito que elas tinham de dizer às noras: “Você nunca tomará o meu lugar!“.
Claro, havia umas mulheres revoltadas por não poder voar. Viravam cactus, só espinho. E os filhos sofriam. Minha avó era assim – que Deus a tenha. Mas não minha mãe, que aprendeu ternura com uma velha escrava chamada Iáiá. Por vezes as mães verdadeiras não são as mães de barriga – são as mães de coração.
As mulheres, hoje, se cansaram de viver para fazer vontade de pai e de marido. Estão se transformando em pássaros: querem voar – determinar o seu destino, ser donas de suas vidas. Liberdade: esse é um direito de todo ser humano.
Quando vocês tiverem a minha idade e forem escrever sobre suas mães, ao invés de dizer que elas eram árvores, vocês dirão que elas eram pássaros! E como os pássaros são belos no seu vôo! Podem ser suaves como as gaivotas ou terríveis como os gaviões... Mas mesmo os pássaros precisam de uma árvore onde descansar e fazer os seus ninhos...
Dicas:
Hoje, dia das mães, brinque de ser poeta. Dê, como presente à sua mãe, uma metáfora poética. De todas as flores e plantas que você conhece, qual é aquela que mais se parece com ela? Que flor ou árvore você plantaria para que nela venha a morar, um dia? Há uma grande variedade que vai dos delicados jasmins do imperador até os cactus... Mas pode ser que sua mãe seja um pássaro!
Hoje, dia das mães, brinque de ser poeta. Dê, como presente à sua mãe, uma metáfora poética. De todas as flores e plantas que você conhece, qual é aquela que mais se parece com ela? Que flor ou árvore você plantaria para que nela venha a morar, um dia? Há uma grande variedade que vai dos delicados jasmins do imperador até os cactus... Mas pode ser que sua mãe seja um pássaro!
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