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quarta-feira, 4 de julho de 2012

O corpo humano, obra prima-da criação (II)

(continuação)
Corpo e Alma

Imanência: limitação, raiz.

Temos uma determinada família, uma língua específica, um capital limitado de inteligência, de afetividade, de amorosidade; somos limitados no tempo e no corpo.
Somos maiores que nosso corpo, porém, nossa vida histórica realiza-se nele e através dele.
Transcendência: seres de abertura
Ninguém segura os pensamentos, ninguém amarra as emoções. Rompemos tudo, ninguém nos aprisiona. Capacidade de romper todos os limites, superar e violar os interditos, projetar-se sempre numa mais além.
A transcendência revela a grandiosidade do ser humano mas também sua dramaticidade, pois ele deve morrer (pela imanência) tendo sempre o desejo de viver.
O corpo é experiência de limites e rebeldia contra esses limites. É experiência de morte e consciência de vida.
Pelo corpo estou no mundo, sou parte do mundo, mas também me sinto para além do mundo.
Tendemos a associar a palavra corpo e alma. Esta dicotomia é fruto de uma tradição dualista que tenta explicar o mistério pessoal, diversificando-o em corpo e alma.

O ser humano tem duas curvas existenciais:

  1. Curva biológica: nela realiza-se a exterioridade humana. Como qualquer outro ser da biosfera, ela cresce, desenvolve-se, chega a seu clímax vital, desce a montanha da vida e morre. Começa a vida com uma enorme bagagem energética. Mas ela, devagar, em prestações, vai sendo consumida até se exaurir. O ser humano ao nascer, começa a morrer. Vai morrendo lentamente, em prestações, até acabar de morrer.
  2. Curva pessoal, sua interioridade: a dinâmica da interioridade é inversa à da exterioridade que acabamos de acenar. A bagagem inicial de um feto recém-concebido é minúscula como uma semente. Mas, ao crescer, ela principia lentamente a se desenvolver. As manifestações do inconsciente pessoal e coletivo começam a emergir. A sensibilidade emerge, a razão, lentamente chega à luz, a vontade se perfila, a consciência irrompe e o coração encontra-se com o pulsar de outros corações.
A curva biológica vai decrescendo e morrendo até acabar de morrer. A curva pessoal vai nascendo e crescendo até acabar de nascer.
O ser humano concreto é a coexistência dessas duas curvas.
O corpo não é só a unidade de meus membros, mas também a Presença de minha Pessoa.
A tradição filosófica do Ocidente chamou a esta unidade composta do ser humano de corpo e alma.
O ser humano é um corpo animado ou uma alma corporificada.
Corpo é o ser humano todo, inteiro (portanto, corpo + alma), enquanto se realiza na curva biológica.
Alma é o ser humano todo, inteiro (portanto, corpo + alma), na medida em que se realiza na curva pessoal.
Corpo não é algo que o ser humano tem, mas uma realidade que ele é.
Algo semelhante deve-se dizer da alma. Não tenho alma. Sou alma. Alma é minha totalidade enquanto rompe o enraizamento e se abre à totalidade e ao infinito.
"Embora possam e devam ser distinguidos, corpo e alma não podem ser separados. Eles não são realidades paralelas, passíveis de dicotomização. O que se separa, na morte, não é o corpo e a alma, mas o tempo e a eternidade."

O corpo como possibilidade de relação
O corpo é relação com a natureza, forma parte do universo natural em sua estrutura psicológica.
O ser humano é uma totalidade inserida ecologicamente dentro de outra totalidade maior que é o universo à nossa volta: "somos membros de um grande corpo".
Tudo ocorre dentro de um imenso processo de evolução. Nesse processo, tudo vem regido pelo equilíbrio entre a vida e a morte.
O ser humano é como um nó de relações voltado para todas as direções. Sua essência reside na capacidade de relação, ilimitada, indefinida, sempre aberta. Esta capacidade (libido, Eros, princípio, esperança etc.) nos dá conta da característica do ser humano sempre insatisfeito, sempre projetando, buscando novos equilíbrios, sempre fazendo a experiência abraâmica de sair para o desconhecido na busca do novo. Esse nó de relações se concretiza na estreiteza de um espaço e de um tempo. A pulsão é ilimitada, mas só se realiza limitadamente.
Eros – no sentido clássico é aquela força que com entusiasmo, alegria e paixão, nos faz buscar a união com as coisas que sentimos e apreciamos, com nossa própria realização, com pessoas significativas de nossos contatos, com nossos ideais, com nossa vocação com Deus.
Eros não implica apenas um sentir, mas um consentir; não apenas dar-se conta da paixão do mundo, mas ter compaixão; não é um viver, mas um conviver, um simpatizar e entrar em comunhão.

Para Platão, Eros é a energia central que anima o espírito, movendo-o insaciavelmente em busca do belo, do verdadeiro, do justo, do bom.
A sociedade inter-relaciona-se em corpos, que por sua vez são presenças humanas. Às vezes esquecemos essa presença humana e valorizamos ou vemos somente o corpo, sem compreendê-lo e respeitá-lo em todas as suas dimensões pessoais.
A manipulação do corpo não pode fazer-se impunemente sem danificar a pessoa, que é experiência orgânica, organismo vivo, humano.
Viver é sentir, é captar o valor das coisas; valor é o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de ser.
Se considerarmos todas as situações de escravidão e exploração do outro – no trabalho, sexual, ideológica – podemos com facilidade perceber o descaso à presença humana.
Há necessidade de, no mundo das relações, crescer a ternura que é o Eros compassivo, capaz de sentir e comungar com o outro, que não detém no gozo do seu próprio impulso, mas descansa no outro com carinho e amor.
A ternura e o cuidado exigem dar atenção ao outro, estar atento à sua estrutura, mostrar solicitude, crescer junto com o outro. Na ternura, a relação não é angustiante porque não há luta de poder e vontade de dominação ou de auto-satisfação, mas é uma relação serena e forte.
É a ternura e o cuidado que criam o universo das excelências, das significações existenciais, daquilo que vale e ganha importância, em função do qual se pode sacrificar o tempo, o empenho e a própria vida.
Só carregados desses sentimentos, podemos perceber que o corpo é presença. É matéria espiritual ou espírito material. O corpo é também fronteira, encontro, peso específico, pegada, história. Meu corpo fez com que me encontre contigo, reconheça-te, respeite, transcenda pelo amor. Teu corpo leva-me à tua pessoa e tua pessoa passa por teu corpo. A partir dela recupero teu corpo em toda a manifestação de tua presença: para o respeito, a ternura, a energia, o trabalho, o jogo, a amizade, a vida.
(continua)

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